Dia 14 de setembro de 1959. O locutor da amplificadora com voz empostada anunciava: para uma
bela jovem que está, neste momento, sentada no banco da praça, alguém com o coração apaixonado lhe
oferece esta linda página musical na magnífica voz de Nelson Gonçalves; para você, a normalista! A voz
possante de Nelson tonitruava no éter estrelado da cidade em festa.
Meu afilhado, no burburinho dos vai e vens da multidão, dividia sua atenção entre a banda que
tocava no patamar da igreja, se antecipando ao grande leilão, e sua obrigação de cuidar das vacas no curral
que ficava próximo de sua casa. Seu pai o encontra e pergunta:
− Marcelo, você já foi ver se a Cigana chegou?
− Não pai, mas vou agora.
− Pois vá mesmo, são quase oito horas da noite; é preciso separar o bezerro pra amanhã se tirar o leite.
Marcelo, com apenas onze anos já tinha suas responsabilidades para ajudar seu pai na labuta do
dia a dia. Lastimou ter que sair da animação da festa. Bodejando cobras e lagartos, amaldiçoou aquela vaca
profana (tirou-o no melhor da festa da Piedade) que sempre chegava cedo ao curral e, justo naquele dia,
véspera do final da festa de setembro, atrasou tanto. O garoto estava no seu dia de glória, vestia a calça
(curta) de linho branco, bem engomada que eu, como seu padrinho, havia lhe dado de presente e a camisa
volta ao mundo azul piscina, prenda de sua madrinha. E mais que isso: estreava os sapatos que esperou
dois anos seus pés crescerem para poder calçá-los. Estes sapatos lhe foram deixados pelo irmão mais velho,
que os usou até não caber mais nos pés.
Enquanto Marcelinho esperava crescer os pés, os sapatos repousavam envoltos em uma flanela
numa caixa de sapato dentro do armário e, vez por outra, recebia cuidados especiais: eram escovados,
engraxados e experimentados para ver o quanto ainda sobrava sapato e faltava pé. Aguardava ansioso o
dia de poder calçar sapatos novos; pouco importava se eram herdados, para ele era novo! Sua mãe, minha
comadre, admirou a beleza do filho todo arrumadinho.
– Meu filho, você está muito bonito, já se parece um rapazinho, hoje vai até arrumar uma namoradinha.
– Oh, mãe, eu ainda sou pequeno, não quero saber de namorada, não; eu sou da cruzada, tenho que rezar
e ajudar na missa. Hoje vou ficar com o turíbulo, gosto do cheiro do incenso quando o padre coloca na
brasa; sobe uma fumaça cheirosa!
Ao chegar ao curral, na rua dos fundos de sua casa, Marcelo encontrou a Cigana malhada,
tranquilamente, ruminando o pasto do dia. Naquele ambiente pouco iluminado, Marcelo tratou logo de por a vaca para dentro do curral, juntando-a ao bezerro e aguardou impacientemente o bezerro apojar para, em
seguida, apartá-lo da mãe e correr de volta para a animação da festa. O pior para Marcelinho estava por vir.
Fechou a porteira do curral apressadamente para abreviar seu retorno à Praça da Matriz, onde seu
pai, sua mãe e seus irmãos estavam sentados na primeira fila próxima à mesa com as prendas do leilão. A
comadre Jovenise se deu pela falta do filho; preocupada, perguntou à filha, que se sentava ao seu lado, se
tinha visto Marcelinho por onde ela andou.
– Não, mãe! Perguntei aos amigos dele e ninguém soube dizer onde estava. Foi quando meu compadre
Jeremias percebeu a aflição da mulher, informou que o havia mandado chiqueirar a Cigana no curral.
– Valha-me, minha Nossa Senhora da Piedade, cadê meu filho, o que terá acontecido com ele? Vamos
Jeremias! Agora mesmo ao curral. Que Deus me perdoe! Marcelinho pode ter levado um coice ou uma
chifrada, ele ainda é tão criança para fazer este tipo de serviço. A família se levantou e rumaram todos para
o curral.
De repente, como rastilho de pólvora, o boato se espalhou pela praça: Marcelinho, filho do
Jeremias levou um coice da vaca; outros corregiam:
– Não, foi uma chifrada.
E todos, em uníssona
solidariedade, rumaram para o curral, deixando quase esvaziado o leilão. O vigário, que estava muito
interessado naquele leilão, pois seria leiloado um garrote doado por um fazendeiro rico, esperava fazer um
bom apurado para Nossa Senhora. Muito a contragosto, o pároco suspendeu, por alguns instantes, o leilão
até que se tivesse notícia do menino que levou uma chifrada.
Foi quando se ouviu a voz embargada de emoção do locutor da amplificadora anunciar:
– Atenção, senhoras e senhores, tenho uma notícia triste. Marcelo, filho dos nossos queridos paroquianos Jeremias e
Jovenise, sofreu um grave acidente nesta noite. Foi violentamente chifrado por uma das vacas de seu pai, e ,segundo informação, será levado para Sobral com grande hemorragia. Que todos rezem para que o
pequeno cruzadinha de nossa paróquia sobreviva para a alegria de todos. Que São Tarcísio o proteja! ´
A família chega ao curral e nada de Marcelo. O pai vasculhou o curral todo. Estava tudo em ordem,
a Cigana e o bezerro separados e as porteiras bem fechadas. A aflição aumentou. Rumaram para casa na
esperança de o encontra lá. De fato, Marcelinho estava aos prantos. Quando viu a mãe foi logo dizendo:
– Mãe, pra mim a festa acabou.
– Oh, meu filhinho! O que lhe aconteceu, você está ferido, está sangrando muito?
– Não, mãe! Não estou nem ferido, e nem sangrando.
– E o que aconteceu com você, meu filho?
– Meti o pé na bosta, meu sapato, está todo cagado, não serve mais pra nada, eu não tenho outro sapato,
como vou voltar pra festa? Foi um alívio para todo mundo e o pai quis saber como aconteceu.
– Me conta meu filho, como isto sucedeu.
– Estava muito escuro pai, quando fechei a porteira do curral e ia voltar para a praça meio apressado, pisei
com meu sapato numa ruma de bosta de vaca; desgraçou meu sapato, não serve mais pra nada.
Nisto chega a turma que deixou a praça. Quando avisada do que realmente tinha ocorrido, a
reação foi um misto de alívio e de galhofa. De repente, não mais que repente, a nova notícia se espalhou
pela praça. O padre ordena a retomada do leilão e pede para Luiz Breu, o leiloeiro oficial, anunciar a boa
nova:
– Aaaatentençãoooooooooo! O memeninino não lelevovou uma chichifrafrada não, fofofoi uma
cacagagada.
QQuem dadádá mamais por esssta gagalinhha aassada?
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A banda tocou e a festa continuou. Em quase tudo na vida, acontecem as cagadas, até na festa de
setembro. Nunca vi uma cagada dar tanta confusão.
Mardone França