domingo, 25 de junho de 2017

NATALI

Entre um paciente e outro, não parava de pensar nele. Estava na África, em Serra Leoa, como médica de uma ONG humanitária. As crianças não paravam de chorar, o hospital improvisado estava apinhado de vítimas do Ebola. Mesmo em condições tão adversas, não parava de pensar nele. Pensava na última conversa que tiveram. Eram amigos há doze anos, conheceram-se na escola ainda adolescentes. Ela era a melhor aluna da escola, até que ele chegou e lhe tomou o posto. Em algumas semanas eles estavam estudando juntos na casa dela, muito chegados um ao outro. No primeiro encontro a tia hesitou diante da intimidade dos estudantes e Natali a tranquilizou:
– Não se preocupe, tia. Há duas semanas não namoro mais o Pedro.
Havia muitas afinidades entre eles. Eram interioranos, pobres e tímidos. Eram também inteligentes, idealistas e perseverantes. A escola pública era na periferia, estudavam à noite, no intervalo ofereciam-lhes droga; seria improvável eles passarem no vestibular. No entanto, com livros usados dos sebos da cidade, na primeira tentativa, os dois ingressaram na universidade pública. Ela foi fazer medicina; ele, direito.
Ele dava aulas particulares e a ajudava a comprar os livros do curso de medicina. Sempre se encontravam para longas e agradáveis conversas. Ambos se conheciam muito bem. Trocavam confidências. Gostavam um do outro, mas um gostar que, conscientemente, não ousava atravessar a fronteira da amizade.
Num dos encontros, tomaram três taças de vinho e trocaram algumas carícias. Natali pensou em beijá-lo, em contar-lhe um sonho recorrente que ela costumava ter, em perguntar-lhe o que ele sentia por ela, mas a timidez não permitiu. Ao final, ele convidou-a para dormirem juntos e ela, desconcertava, recusou.
Passaram um ano sem se ver. Ele ligou três vezes, ela não atendeu, até que ela resolveu ligar para convidá-lo para a sua colação de grau. Ele inicialmente recusou o convite, disse que estava estudando muito para o concurso da diplomacia e não poderia perder tempo com formalidades; assim mesmo, um dia antes do evento, ligou perguntando onde seria.
Natali era a oradora da turma. No seu discurso, agradeceu a Deus, à tia, à proteção da mãe já falecida, até que chegou nele, a quem dedicou uma homenagem longa e emocionante, que arrancou lágrimas e aplausos. Naquela noite eles beberam vinho até tarde. Ela havia prometido para si mesma que, se ele a convidasse novamente para dormir, ela aceitaria. Mas, nessa noite, ele não a convidou.
Dois meses depois, ele ligou para dizer que havia sido aprovado para o Instituto Rio Branco e iria estudar em Brasília. Ela ficou num misto de tristeza e felicidade e disse que ia começar a residência em infectologia.
No último encontro, ele já estava, como diplomata, intermediando um acordo de paz em Timor Leste e ela, como médica, tentando salvar vidas na África. Nesse encontro, a conversa fluiu como sempre agradável, até que ele falou que estava amando outra pessoa. Natali tentou dissimular a perplexidade e acabou descobrindo que se tratava de uma pessoa bem diferente dela, bem diferente dele. Não conseguia compreender isso. Ele nunca a assumiu e agora estava disposto a assumir uma mulher com dois filhos, mais velha do que ele e ainda importunada pelo ex-marido. O que teria essa mulher? Pensou em se declarar para ele, em beijá-lo, em pedir para que ele dormisse com ela essa noite, em pedir para que ele não casasse com essa outra mulher... Não conseguiu. Desejou boa sorte ao amigo, despediu-se dele como sempre se despedia e foi chorar em sua cama solitária.
Pedro foi seu primeiro e único namorado. Estava com ele há três meses quando Dimitri apareceu na escola. Não se arrependia de tê-lo deixado. Percebeu desde o princípio que sua relação com Dimitri não seria uma amizade qualquer. Sinceramente, ela não acreditava em amizade entre homem e mulher, sobretudo se ambos fossem jovens e bem-apessoados. O tempo, porém, insistia em negar sua convicção. Dimitri tinha à época quinze anos; ela, dezesseis. Quando o viu pela primeira vez pensou:
– É ele!
Não conseguia compreender como um sentimento surgido de forma tão arrebatadora não havia ainda resultado em namoro, ao menos num namoro formalmente declarado. Depois de um começo animador, de um afago na casa da tia, os encontros largaram o rumo do namoro e seguiram a tendência da amizade. Quando no ano seguinte ele deixou a escola, os encontros foram aos poucos minguando. No segundo ano, em escolas diferentes, viram-se pouco. Já no terceiro ano, as conversas se amiudaram. Era época de vestibular. Combinaram de estudar algumas vezes juntos, de trocarem apostilas, de comentarem o livro de cabeceira. Falavam-se no telefone até tarde.
Não esquecia o dia em que foram à praia. Pela primeira vez viu Dimitri sem camisa. Era magro, não tinha músculo, o tórax pálido parecia não ter visto sol há alguns anos. Ele se pôs a ler um livro, sentado na areia, erguendo a cabeça volta e meia para contemplar uma jangada distante, enquanto ela ainda decidia se ficava ou não de biquíni. Admirava a serenidade do amigo, a sua discrição, o respeito com que ele a tratava, às vezes até demasiado. No fundo, esperava um pouco mais de ousadia por parte dele. Ele que pedisse para ela ficar de biquíni. Se não pediu é porque não estava interessado em vê-la. Ficou mesmo de calça e camisa. Abriu um livro e também se pôs a ler.
Anos depois, Dimitri confessou que estava ansioso para vê-la de biquíni e que pensou em pedi-la para tirar a roupa, mas achou que a ousadia seria mal interpretada e preferiu não tocar no assunto.
No final de um dia terrível, em que duas crianças e um adulto haviam sucumbido à epidemia, Natali recebeu no acampamento o convite para o casamento do amigo. Ficou pálida, pensou em rasgá-lo, em jogá-lo na fogueira, mas se conteve e, antes de amassá-lo, uma lágrima caiu sobre o nome do amigo. Naquela noite não conseguiu pregar os olhos. No meio da madrugada, insone, sentou-se no terreiro deserto, iluminado apenas pelo céu estrelado, e chorou copiosamente, como nunca havia chorado antes. Aquilo devia ser um pesadelo. Não podia acreditar. Dimitri não era apenas um amigo. Era muito mais do que isso. Pela primeira vez sentiu ciúme, sentiu ódio de uma pessoa cujo nome nem chegou a ler. Não teria coragem de ir àquele casamento. Não conseguiria suportar. Em um mês o seu Dimitri estaria casado com outra.
Perdeu todo o prazer no que fazia. Passou a dedicar-se mais ao trabalho para compensar a repentina falta de atenção. Não conseguia comer. As noites alternavam-se entre a insônia e os pesadelos com o casamento. Ninguém sabia o que estava acontecendo com ela. Com a imunidade baixa, não poderia desafiar o Ebola. No sétimo dia de suplício, resolveu ligar para Dimitri e pedir um encontro de emergência.
O encontro não pôde ser em Fortaleza. Dimitri estava de passagem em Joanesburgo, sem tempo, mas aceitou ir a Freetown falar com a amiga. Natali foi apanhá-lo no aeroporto e à noite foram a um restaurante às margens do Atlântico.
– Recebeu o convite? – perguntou Dimitri.
– Sim. – respondeu Natali.
Natali havia preparado um longo sermão para o amigo, com a ideia de extravasar todos os sentimentos represados há muito tempo em relação a ele. Logo que o viu, porém, deu-se conta de que uma declaração dessa natureza estava além das suas forças.
– Como vão as coisas, Dimitri? O trabalho, a noiva...?
– Suponho que você não me trouxe aqui para falar do meu trabalho, não é mesmo? Quanto à noiva, não sei de que noiva você está falando...
– Ora, a senhora dos dois filhos, perseguida pelo ex-marido...
– Não estou mais com ela...
– Nossa! Então... Bem, mas convidei-o apenas para dizê-lo pessoalmente que não vou ao casamento!
– Não vai?!
– Não vou! Tenho meus motivos para não ir. Na verdade, tenho muitas coisas para dizê-lo, mas somente consigo afirmar que achei uma afronta aquele convite.
– Uma afronta?
– Uma afronta!
– Nossa! Pensei que você iria gostar.
– Desde que recebi o convite, estou sem conseguir comer e dormir. Ando dispersa, não sei como estou indo ao trabalho.
– Não era para tanto. Pensei que você gostasse de mim...
– Claro que gosto, mas gosto de um jeito que você talvez não entenda.
– Acho que agora, definitivamente, estou entendendo.
– Se tivesse entendido não teria enviado aquele convite.
– Era apenas um convite! Não precisava convertê-lo num drama.
– Um simples convite? Depois de doze anos, Dimitri, pela primeira vez estou tendo a sensação de que você é uma pessoa fria.
– Eu? Frio?
– Desculpa, Dimitri! Sei bem que você não é frio, muito pelo contrário. É que gosto muito de você e aquele convite me abalou bastante.
– Não estou entendendo nada, Natali. Você leu mesmo o convite? Tudo bem que o recusasse, mas não havia motivo para abalo.
– Havia sim, Dimitri. Os motivos estão guardados no fundo do meu ser.
– Você é uma pessoa muito misteriosa, Natali. Pensei ter descoberto seu segredo. Enganei-me redondamente. Pensei que você me amasse.
Natali marejou os olhos de lágrimas e, desconcertada, falou:
– Eu te amo, Dimitri!
– Me ama e recusou o convite...
– Recusei o convite exatamente porque te amo. Não suportaria ver você casando com outra.
– Natali, você leu o meu convite?
– Já disse que li.
– Tem certeza que leu?
– Confesso que caiu uma lágrima em cima do seu nome.
– Qual é o nome da noiva, então?!
– O nome da noiva? Depois que li o seu nome entrei em pane.
– Hum. Acabei de descobrir o seu segredo. Você tem o convite?
– Acho que rasguei, joguei na fogueira, não sei ao certo...
– Espere, tenho um aqui, você poderia lê-lo?
– Por favor, Dimitri, não me faça sofrer mais!
– Natali, peço-lhe apenas que leia o nome da noiva, por favor.
Natali tomou o convite, hesitou antes de lê-lo, mas, de repente, uma luz enorme invadiu o seu ser, quando viu, com os olhos cheios de lágrimas, que o nome da noiva escrito no convite era: Natali.

Eliton Meneses

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