Meados dos anos cinquenta. Acontecia a inexorável transição de minha infância para a puberdade. Os primeiros sonhos agitavam-me a mente. Lembro-me bem mundo de então, da minha Palma querida...
Minha casa era de cor azul, situada numa singela pracinha, ainda sem calçamento, onde os jovens de minha época corriam de bicicleta alugada ou circulavam na busca dos primeiros namoros com os brotos, que usavam saias abaixo do joelho e sob elas as anáguas endurecidas pelo grude e que lhes dava um aspecto que lembrava os vestidos das dançarinas de balé.
Num dos extremos da praça, estava a igrejinha, com sua torre e seu sino melodioso, tangido pelo eterno sacristão Irineu, ao amanhecer, ao meio-dia e no entardecer. Só silenciava durante a Quaresma, quando era substituído pelo martelar seco da indefectível matraca. No outro extremo da praça ficava a casa do vovô Leopoldo, de frente à igreja. Guardo nos mínimos detalhes como eu o via sentado em sua cadeira de balanço, ao lado de sua companheira Quina, a receber a visita de suas filhas e netos. Ainda hoje me vem à mente o perfume do jasmineiro, na entrada de sua casa... No outro lado morava o vovô Batista e sua Quintina. Esse era muito ligado à sua fazenda de onde retornava nos fins de semana.
Minha casa tinha de tudo: um quintal com vacas leiteiras, porcos e galinhas caipiras de pescoço pelado. Até rádio – coisa rara na época – tínhamos um que eu escutava horas e horas quase sempre a velha PRE-9 ou Rádio Timbira do Maranhão. As rádios de Sobral só viriam depois.
A Palma é um lugar bonito. Pobre, mas bonito. Fica entre duas lindas serras azuis: a Meruoca e a Ibiapaba, sem esquecer o Serrote com seus olhos d’água perenes e seu verde exuberante no inverno.
Às vezes sentava-me no auto do mourão, na porteira do estábulo de minha casa, e entrava em profundo devaneio, a contemplar a silhueta da Serra Grande, não sei bem se a imaginar que o mundo terminava ali, por trás daquela imensa montanha. Afinal meu era aquele...
A Palma do meu tempo era uma cidade alegre. Tinha uma original bandinha que animava a Festa de Nossa Senhora da Piedade, com seus partidos Encarnado e Azul (lá em casa éramos do Encarnado) e os bailes em que imperava a divisão preconceituosa e inaceitável de “pardos” e “brancos”. E havia ainda, animados pela bandinha, as retretas no patamar da igreja. O mais original, porém, era a festiva chamada dos músicos com o toque do bumba da casa do Chico Irineu. Toda a população ouriçava com os primeiros acordes da bandinha. Gente, cá pra nós, aquela bandinha precisa renascer com toda sua originalidade.
E pau do rio? Existirá ainda aquela frutinha gostosa? De vez em quando chegava um dos afilhados de minha mãe com um prato de ágata abarrotado de pau do rio para nos presentear esperando, talvez, nos agradar e ao mesmo tempo receber em troca um prato cheio de farinha. Esse tipo de relação de troca me comove profundamente, pois configura, até na quase pobreza absoluta, a dignidade de nossa gente.
Os tempos passaram, alcancei novos valores, conheci outras terras, conquistei novas amizades. Entrementes, minha Palma, que é minha terra natal, permanecerá em mim, de forma indestrutível, a mesma de minha infância: bucólica, terna, alegre, ensolarada e, acima de tudo, terra de gente boa, digna e empreendedora.
Galba Gomes
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