Desde muitos anos, a partir do Holoceno, o homem tem uma usura de acumular bens; gosta de possuir coisas sempre mais que alguém e assim valorizar empolgadamente tudo o que possui.
Maria do Socorro era órfã de mãe há dez anos; seu pai lhe cedera uma boa parte da herança que lhe pertencia por direito, à qual dividia também com um irmão. Imediatamente, este já gastara tudo com a bebida, farras, enfim... Socorro, uma mulher de uns vinte e poucos anos de idade, aproximadamente um metro e sessenta de altura, de grossura média, pele rosa-escuro, cabelos pretos, olhos marrons, unhas sãs e bem esmaltadas - gosta de ser rica, ambiciosa, lasciva, preconceituosa, mas diz que não é nada disso.
Na casa dela, uma mansão luxuosa, a fachada é toda feita no capricho, cerâmica brilhante, portões de ferro e uma linda porta de acesso, uma veneziana de móvel resplandecente de cor vermelho vivo; na sala de visitas, importantes e preciosos móveis e estofados, tudo de alto valor, alto custo, onde se encontra valiosos objetos, bons e de última geração, tapetes riquíssimos em todos os batentes e carpetes.
Em dias de festa, ela se pinta e se arruma toda para dançar e também mostrar a riqueza e o valor materialista. É exagerada em tudo: nas roupas, nos calçados, nos tamancos de salto alto, esplêndidos e de bons materiais; os cabelos liberam odor e brilho a uma distância de vários metros; nos lábios, batom 24 horas, cor inédita e resistente, e fazia inveja a qualquer mulher; usa também joias preciosíssimas, de outros materiais (ouro, diamante etc.); no pulso usava um relógio que, com certeza, teria custado uma fortuna.
Quando dava minutos após o começo da festa dançante, ela saia com seu filho de casa, num carrão do ano e de cuja marca talvez ali naquela cidade não existisse outro igual.
Ela não frequenta a igreja, só porque lá tem é pobres! Certa vez uma pobre vizinha perguntou:
- Socorrinha! Diz-me uma coisa, a Sra. não vai para missa, não?
-Eu!? Não! - riu-se - Minha filha, rica e bonita, não preciso dessas coisas aí na minha vida. Não dependo de santos, igreja, missas para viver. Eu sou rica o suficiente. - bateu ela arrogantemente no peito como expressão de escárnio e menosprezo, cheia de tanto orgulho e ignorância. - Rica como eu, eu sou mais eu! Sou independente até de espíritos, como Deus, Jesus! Tenho muito dinheiro, muito! pois tenho condições para comprar a minha própria vida e a minha saúde, minha e do meu filho aqui.
- A senhora nem agradece a Deus a tua vida e a tua saúde e por tudo que tens?
-Não! Sou rica e minha riqueza não depende nem do meu pai, porque só me deu uma parte do espólio e o resto do que tenho eu aqui ganhei! - bateu novamente três vezes amiúde no peito - Olha, não devo satisfação de minha vida para ninguém, viu?! - E saiu.
- Pois deveria prestar contas com Deus.
- Entenda de uma vez por todas. Para mim, só importa o luxo, as belezas de minha pele, o que sou realmente... Não me importa sentimentos sacros e religiosos de vocês pobres.
- Pois a senhora é “uma ateu”!
- Não, não sou ateia. Somente não creio em sentimentos dessas miseráveis igrejas.
A mulher persignara dizendo:
- Ave-marias! Ô meu Deus! O que pensa, afinal, da vida uma criatura dessa daí, só mergulhada no dinheiro e no luxo?! Eu tenho é pena! O que será feito dessa criatura?!
- Dane-se quem quiser! Eu quero é distância desse Deus e dessa igreja, que não serve para nada mesmo: não vai mais dar à minha vida, pois já tenho; nem à minha saúde, que também já tenho; não vai me dar dinheiro sempre, nem nada. Eu não vou ganhar nada lá mesmo... e mesmo eles só dão valor aos ricos e bons de posse, principalmente como eu, logico, só para puxar o meu saco e vir me pedir dinheiro em oferta, cobrar caro para receber sacramentos, arrematar porcaria em leilão, ...
- Sabia que a senhora é muito nojenta! Muito egoísta e miserável.
- Nojenta é tu, pobretona, molambenta! Sua fedida, sua morta de fome! Tenho tudo de bom para mim na hora que bem quero. Tenho vestimentas para trocar até em cada minuto do dia, e comida inacabável... Olha, tenho é nojo; sinto até ânsia de vomito quando fico perto de pobre como tu.
- Pois vomita aí na tua calçada, menos em cima de mim! Põe para fora estomago, bofe, fígado, intestino... Porém, bota para fora também essa altivez nociva! Tenho a última certeza que, quando morrer, irá ser igual a mim quanto a qualquer outra pessoa morta, sem vida, dura e podre, e que já é podre o suficiente antes mesmo de morrer! Que as tuas carnes ruins vão virando água e lama podre, pois a podridão humana é maior do que a de um animal; tu não é melhor do que ninguém. Tenho fé em Deus que vou durar bem muito e isso eu vou ver muito, porque vai com certeza acontecer, mais cedo ou mais tarde, esta é a maior certeza. Seja justo, Deus! O criador de tudo do céu e da terra, que faça justiça e castigue severamente a ti por tudo que tu pensa e faz aqui na terra, por cada vão ato! E também pelo desamor a ele e pela a tua vangloria!
- Não, esfomeada em penúria! Está me rogando praga. Vai acontecer bem contigo isso! Salvo-me assaz mais fácil que tu, além de ser bonita e atraente, tenho bastante dinheiro para tudo, inclusive compro se for preciso também essa porcaria de salvação, quando oferecer minha fortuna pecuniária à Ele, não resiste com certeza extrema não recusarão jamais e fecha o negócio imediatamente; serei a primeira na fila a ser atendida, para o porteiro do céu darei logo uma farta gorjeta e pronto, aos santos, à N. Senhora e Jesus Cristo, darei um óbolo... Comigo, ora, dinheiro, dinheiro compra e vale tudo, dele que veio a origem de tudo! O pobre é quem se dá mal, é desgraçado até para se salvar eternamente. Primeiramente, quando morrer, coitado, usa um velamento pobre mesmo: um caixão de madeira e pano relaxadamente no preço, as vezes dado por um amigo ou político rico, familiares, vela e o enterro é num buraco ou num túmulo feito de barro e massa de cal com tijolos crus. Eu não, sou rica, é diferente; quando morrer, que eu acho até difícil, exijo um velório e um sepultamento de última tecnologia; antes uma semana ou mais de bálsamo; idolatrada, admirada, serei sem dúvida vista lindamente como uma bela adormecida por todos os pobres, que são pobres logo em vida, eu serei levada a uma necrópole só pra ricos e logo depois serei cremada.
- Dinheiro e riqueza são inimigos da concórdia e amigos da futilidade... Desconjuro! Que Deus misericordioso tenha compaixão da tua manchada e perdida alma.
- Trata pelo menos de engordar, para não assar só os ossos no fogo do inferno! Rico merece tudo de bom, enquanto os pobres tudo de miséria: morbidez, morfeia. Várias vezes veio alguém aqui me pedir esmola; espanquei a todos e disse: “sai daqui! Vai embora! Estás sujando minha limpa casa”. Pediu-me até pelo amor de Deus, ao que eu disse: “não a esses vagamundos esmoleis! Eu amo a Deus e não aos lázaros como vocês, esmolentos, dipsomaníacos...!” Os infaustos insistentes tiveram a ousadia de se ajoelharam aos pés da porta, pedindo e chorando; pediram mesmo que fosse pouco; eu, para me livrar da perseguição, peguei o cinturão de minha calça, que não vestia mais, e dei-lhes umas boas lapadas, nas caras deles, dizendo: “vão comer no inferno, bando de desgraçados!”.
- Mas você é mesmo uma da parte do ruim! Pensava que tinha alma, como um cristão, mas vejo que não tem, como uma bruta! Não tem medo de ser castigada, não, ordinária ruim?!
- Pobre não vale nada. Até Deus dispensa os seus pedidos e agradecimentos. Ora, por mim, por meu próprio querer, eu não pisaria no chão que os pobres andam apodrecendo, com suas sujas e podres carnes.
- Também tens carnes podres, como eu, bicha nojenta!
- Não, pois cheire aqui eu e depois tu mesma diga qual é a mais perfumada. Tu tens uma catinga de seroto (1) misturado com suor, com óleo de cozinha, com fumaça de madeira queimada. Vem a inhaca até aqui.
- Pois se tu não queres andar na terra, como os pobres, então compra um avião, “bicha” antipática e prepotente, e ainda egoísta!
- Ouça-me, Robert! Nunca mais desobedeça-me e saia para brincar com esse esqueleto aí, ouviu?! - Esse teu morto de fome que fica aqui no portão de minha casa corubijando as coisas do meu filho.
- Laves bem vossa língua quando for falar do meu filho, viu! - Né, meu filho! Meu filhinho é muito é gordo! - Esqueleto é...
- Tens aí à vontade, dentro de casa, brinquedos bons, de rico, jogos eletrônicos! Deixas de brincar sozinho com seus objetos para brincar com esse pobrezinho atordoado, abestado?! - riu ela caçoando de Raimundinha - Para mim, ser pobre é ser adversário da felicidade, de tudo de bom. Tenho orgulho de ser rica como sou; não preciso de ninguém mais nesse mundo! Possuo tudo de bom do materialismo ao espiritualismo! Pra mim ser pobre é uma doença.
- Essa não! Deus é mais para os pobres do que para os ricos!
- Ah, não! Digo o contrário. E ainda mais: o pobre não vale nada, vocês não merecem nem viver.
- Não vale nada é o rico orgulhoso e preconceituoso como tu, bicha nojenta, isso sim! Tenho fé em Deus que um dia no purgatório nós nos encontramos, porque quero te ver lá sofrendo, penando feito um cururu na brasa acesa assim quando se queima um roçado; quero ver o que vai fazer lá precisando unicamente da minha ajuda para te tirar do sufoco, porque aqui se faz aqui se paga... que no último grau para se perder, me rogando aos prantos de joelho e prostrada aos meus pés, que, com a minha humildade, soltarei da minha pobre boca podre a saliva para molhar a pontinha da tua seca língua, e o perdão por tudo que me fez de ruim aqui na terra, que esse tu vai reconhecer e agradecer tudo de tão importante e decisivo que será, no momento tão flagelado e esgotante nem lagrimas nesse comenos tu terás mais; terá secado tudo no calor da chama do fogo infernal. - ela cuspiu-se toda, e disse com birra de convicção: - Olha, nunca, jamais isso acontecerá comigo, minha filha! Isso contigo sim! Ah, é que vai! Isso eu vou ver.
- Vamos, Robert! - pegou no braço do menino, com uma forma brusca e colérica. - Deixa de bate-papo com essa pré-infernal.
- Vamos, Robert! - pegou no braço do menino, com uma forma brusca e colérica. - Deixa de bate-papo com essa pré-infernal.
Entrou no carro e saiu antipaticamente. Os vizinhos todos alvorotados na rua. Um vizinho disse:
- Ô mulher infaroza (2)! Pensa que só porque é rica não adoece e não morre também!
Outro perguntou:
- Toda vida essa bicha foi assim, desde que veio morar aqui, ela não deixa ninguém entrar na casa dela de jeito nenhum, o portão é sempre bem trancado com cadeado, diz que não é pra sujar, aí tem um mistério, como é que pode uma pessoa que recebeu há muito tempo uma herancinha do pai estar tão rica assim, que nem ao próprio pai dá valor?! Faz anos atrás, ele diz que a sua riqueza tem origem quando ganhou na loteria, não sei quanto em dinheiro; luxa, come só do bom e do melhor, usa carro do ano, e não acaba mais o dinheiro?! Sei lá... vida boa é dos outros né! Sei que ela tem aí nesta história um arcano, um enigma muito forte, a gente um dia ainda vai descobrir os podres dela.
Assim ficaram todas ali matutando. Uma pensava que ela rouba, a outra que ela usa latrocínio, a outra que ela vai buscar dinheiro do pai, a outra que ela é traficante de drogas, a outra diz pensou que ela embroma as pessoas dando calotes nos comerciantes... Uma disse:
- Ela é bem assaltante, sequestradora!
Raimundinha, na inocência, disse:
- Afinal, qual dessas opções é a correta, né?
As pessoas ali todas respondiam:
- Sei não, viu! Nós na verdade não sabemos. Eu só sei que coisa boa não é! Como é que pode uma pequena herança para uma mulher como ela de hábitos de rico, cheia de luxos poder assim sobrevir mantendo o mesmo padrão alto de vida?! Aí tem coisa! Mas o que será mesmo, né?! Eu queria muito saber. Eu queria descobrir a podridão dela para eu depois descará-la no meio da rua, sobre o que ela é debaixo dos panos, queria dizer quem é podre afinal, eu ou ela!
Francisco Erandir Lima Albuquerque
Membro da APL
(conto presente em seu livro manuscrito Sentimentos em Contos)
Vocabulário:
(1) Seroto: sujo.
(2) Infaroza: antipática.
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