Era só um vira-lata, como tantos outros vira-latas: mas era o Tupã, nosso cachorro de estimação, preto, pretinho da ponta do rabo à ponta do focinho. Fisicamente, não tinha nada além do negrume que se possa ressaltar, não era pequeno nem grande; médio. Mas era o Tupã. Amigo, protetor, sempre a nos companhar nas nossas andanças pela cidade e pelo mato. Ai de quem ou de que se atrevesse a nos importunar; o anjo negro manifestava sua ferocidade canina para nos proteger.
Falo sempre no plural da terceira pessoa porque a missão do Tupã não era das mais fáceis: tomou para si a responsabilidade de proteger quem ele considerava da família França, que não era pouca gente. Nossa casa lá em Coreaú ficava – ainda fica, mas não é mais casa nem é mais nossa e não tem mais Tupã para guardá-la – na rua de baixo, uma rua que vai se estreitando à medida que descia rumo ai rio. Toda a extensão frontal da casa e a corresponde parte da rua eram território demarcado do Tupã. Era quando ele resgatava a herança atávica dos seus ancestrais, lobos selvagens, protetores ferozes de seus territórios; qualquer pessoa transeunte, carro, bicicleta e principalmente cachorro, para o Tupã, era considerado invasor de seu território e reagia latindo, mostrando em aberto as mandíbulas ameaçadoras. Afora seus semelhantes, as bicicletas eram seus alvos preferidos; quando passavam, ele corria atrás latindo e tentando morder o pneu dianteiro, até que o invasor transpusesse os limites de seu território. Não era um cão violento, agressivo, mas era o Tupã, cumprindo sua missão de nosso cão de guarda. Não me lembro como ele chegou lá em casa, não me lembro dele cachorrinho; na minha memória ele começa a existe já cachorrão, melhor dizendo, adulto: como já disse, ele não era grande, era médio.
Ah, não sei se era por ele ser o negão que lhe emprestava um charme todo especial, pois as cachorras, e principalmente, aquelas bem "cachorras", quando estavam no cio, arrastavam atrás de si uma procissão de cachorros de todos os tipos e faziam questão de passar no território do Tupã: era um escarcéu que eu, menino, gostava de apreciar. Os latidos, as brigas se generalizavam entre os machos, enquanto a cadela disputada aguardava que o macho alfa se sobrepusesse aos demais para ganhar a prenda tão cobiçada. Quase sempre era o Tupã; se via a felicidade na alma da cadela por ter o tupã como amante. Esse era o Tupã! Vira-lata, valente e garanhão.
O tempo passava e as coisas iam tomando novo rumo na nossa família. O Tupã, como todo vivente, envelhecia, mas sempre vigilante e fiel e com saúde, nunca o vi doente. Até que chega o dia de nossa família se mudar de mala e cuia para a cidade de Sobral. Discutiu-se o que fazer com Tupã: ele ia ou ficava? Papai decidiu que ele ficaria, pois já estava velho; íamos morar numa cidade grande; um cachorro podia ser um problema. Não adiantaram as ponderações, decisão do Seu Carneiro tomada: prego batido, ponta virada. Consternação geral, tínhamos que nos separar do velho pretinho. Mas papai disse que não íamos abandonar o Tupã à própria sorte, porque o Zé Maria Gregório, casado com a Ia (Maria), que morou desde mocinha com nossa família e ajudou a cuidar de muitos de nós, iam ficar morando na casa e cuidar do Tupã, mas isso não aliviou muito nossa tristeza, não.
Chega o dia da mudança. Caminhão misto (metade boleia, metade carroceria), muito usado para fazer os horários de uma cidade à outra, parado em frente a casa. As mulheres e as crianças ocupariam as boleias, enquanto na meia carroceria se acomodariam os móveis, mantimentos e os homens. Nestes momentos de partida, os corações também se partem; afinal, deixam-se para trás as nossas memórias, os nossos amigos, o cantinho onde se costumava dormir, a janela de onde se apreciava o pôr do sol e se abria o guarda-chuva ou a sombrinha para ver a chuva cair e tantas outras coisas... E o Tupã.
A movimentação no longo corredor da casa era intensa, eram pessoas carregando mesa, cadeira, cama, sacos de redes, sacos de feijão, farinha e tudo que seria necessário na nova casa. Aos poucos a casa foi ficando vazia e o caminhão carregado: hora das despedidas, dos abraços e dos choros sentidos. Mas, e o Tupã? Atarantado, entrava e saia acompanhando cada objeto que se ia, até que seu instinto canino pareceu entender a gravidade da situação para a qual ele não foi informado. Parou o seu vai-e-vem e postou-se na calçada ao lado do caminhão, sentado sobre as patas traseiras em posição de observador. As pessoas ocupavam seus lugares no carro e ele a observar cada movimento, talvez acreditando que o último a subir o convidaria. Todos subiram. O anjo negro se inquietou e começou a andar em círculo em volta do caminhão, como último recurso para se fazer lembrar. O carro deu partida; daquele instante em diante, para nós, não existia mais o pra trás tão acolhedor, tão conhecido, só o pra frente incerto e desconhecido. O caminhão deixou para trás a cidade e entrou na rodagem de piçarra vermelha deixando para trás nuvens de poeira e de saudades. O Tupã, fiel amigo, correu enquanto pode, seguindo o carro, até que a poeira lhe embaraçou a visão e o fez voltar. Tupã definitivamente ficou aonde gostaríamos de nunca ter saído, mas a tristeza de deixá-lo nos acompanhou.
Alguns dias depois de já estarmos estabelecidos na nova cidade, na nova casa, recebemos a visita de amigos e familiares e os relatos que ouvimos foram de cortar coração. Disseram-nos que ninguém conseguia mais dormir nas casas da redondeza por conta do lamento e clamor de Tupã uivando na escuridão da madrugada e arranhando com suas patas dianteiras a porta de entrada da nossa casa. O relato era de cortar o coração de uma estatua de bronze. Depois da comoção a reação. Papai decidiu que iria buscar o Tupã para ficar com a gente em Sobral. E assim foi feito. Indescritível com palavras o reencontro, nem gente que tem alma manifestaria sua alegria e felicidade como fez aquele vira-lata pretinho.
A partir de então voltamos ao bom convívio com nosso anjo negro, que logo se adaptou ao novo ambiente e assumiu sua função de fiel protetor da ingrata família França. Mas ele, como tinha bom coração, já havia nos perdoado. Tupã estava velho, mas não definhava, continuava relativamente saudável, até que num certo dia sentimos sua falta e saímos a procurá-lo por uns matos da redondeza e fomos informados por pessoas conhecidas do bairro que ele estava morto ali perto. O encontramos e junto com ele enterramos parte da história de nossa infância de nossa família e de nossas saudades. Morreu como viveu, com a dignidade de um vira-lata fiel. Ah, meu anjo negro, nestas mal traçadas linhas, quis te fazer esta homenagem e te pedir perdão por ter-te feito sofrer por nós. Oh! velho Tupã, não foste só um vira-lata pretinho, pretinho da ponta do rabo a ponta do focinho que morria de medo de trovão... Logo tu, Tupã! Foste sempre nosso fiel anjo da guarda. Se tiver céu pra cachorro, Tupã, com certeza, estará lá.
Mardone França