Era começo da manhã do dia 20 de fevereiro de 1985, uma quarta-feira de cinzas de um inverno chuvoso. Há poucos dias fizera sete anos de idade, mas recordo do acidente como se fosse ontem. Com a cheia do rio, retornávamos das compras do dia com água no meio da canela pela rua de baixo inundada. Piedade erguia a meia altura a vasilha com uns poucos mantimentos e caminhava lentamente sem atinar no mundo em sua volta. Meus olhos não desgrudavam da canoa que atravessava com dificuldade a forte correnteza. Tentei alertar minha irmã. Ela não deu atenção.
Notei que havia algo errado. A canoa realizava a travessia quase numa linha reta, quando o normal seria subir um pouco o rio, para formar um semicírculo. Quase no meio do rio, a canoa começou a se aproximar perigosamente da velha barragem encoberta pelas águas turvas da enchente. Os remadores, percebendo o risco, redobraram o esforço para recuperar o controle da pequena embarcação apinhada de pessoas e pertences que vinham do interior para a missa de cinzas em Coreaú.
Com a barragem se aproximando, a proa da canoa foi voltada contra a correnteza, numa tentativa desesperada de retomar o trajeto natural. Com o esforço enorme dos remadores, a canoa, por alguns momentos, deteve a queda rumo à barragem, mas sem conseguir subir um único metro rio acima. A partir daquele momento, todos na então movimentada rua de baixo voltaram suas atenções para a batalha dos remadores contra a força da correnteza, num alvoroço enorme.
Depois de alguns momentos, os braços exaustos dos remadores não mais resistiram à força da correnteza e a canoa começou a descer inexorável o rio, até encontrar os pilares submersos da velha barragem. Nos pilares, a canoa se firmou por alguns instantes. Quem sabia nadar lançou-se logo nas águas agitadas abaixo da barragem. Os remanescentes, especialmente idosos, mulheres e crianças, ficaram agarrados uns aos outros clamando desesperadamente por socorro.
Algumas testemunhas da tragédia lançaram-se nas águas para salvar os náufragos. Recordo particularmente do ato de heroísmo de Tium e de João Velha, mas outros tantos ajudaram no resgate, inclusive os próprios remadores.
Momentos depois, já com poucas pessoas a bordo, a canoa perdeu o equilíbrio nos pilares e emborcou, lançando nas águas quase todos os passageiros remanescentes. Nesse momento, testemunhei boquiaberto um jovem passageiro, menino ainda, acompanhar habilidosamente o giro da canoa e se instalar no casco, equilibrando-se precariamente, até que, cedendo aos apelos de Tium, saltou na água assustadora e foi resgatado antes da curva do rio.
Na tragédia, seis pessoas perderam a vida. Três corpos foram encontrados, outros três foram declarados desaparecidos. Durante vários dias, pescadores realizaram buscas orientados por uma cabaça e uma vela acesa dentro, que, segunda a lenda, seria atraída pelo corpo do náufrago, girando em cima dele quando o encontrasse.
Conta-se que, na véspera do naufrágio, o rio havia roncando, produzindo um som estranho que seria o prenúncio da tragédia. Alguns falavam num caixão misterioso arrastado pelas águas do rio na noite anterior, além de outras estórias mais.
Depois do acidente, João Velha recebeu reconhecimento pelo ato de heroísmo; Tium, reconhecimento e a remissão de uma condenação criminal. A canoa obsoleta levada pelas águas foi substituída por uma mais moderna, adquirida às pressas pelo prefeito em Sobral. O canoeiro contratado para comandar a nova embarcação, por coincidência, foi Oneon Bezerra, meu pai.
Pouco tempo depois, porém, quiçá pelo alerta da tragédia, uma ponte estreita foi construída, desviando o leito do rio e acabando definitivamente a era da barragem e da travessia de canoa.
Eliton Meneses
Membro da APL