domingo, 9 de março de 2014

COMPAIXÃO

Os raios solares cintilavam toda a extensão territorial, onde se encontrava José. Um balde, preso a uma corda, emergia de um profundo poço já quase seco pela escassez de chuva. O conteúdo contido no recipiente era barrento, era sujo, era impuro, era água. Nosso amigo José fizera uma longa caminhada de sua casa ao presente local. A maioria dos rios encontrava-se vazios; este poço, em pouco tempo, não seria mais exceção.  

José, neste instante, regressa à sua casa. Vai devagar, com passadas lentas, quase rasteja. Segura, em cada uma das mãos, um balde. O líquido, transparente por origem, encontra-se com cor. O trajeto é longo, árduo; o agricultor, dizemos assim sua profissão por força do hábito, pois em períodos assim, esse trabalho tão digno torna-se impraticável, encaminha-se ao seu modesto lar, perdido em pensamentos.     

José ultrapassa os trinta anos, possui altura regular, uma fisionomia fatigada, enrugada, beirando a tristeza. Casado há alguns anos, possui um único filho batizado de Francisco, pelo qual guarda um amor incondicional. Desde o nascimento da criança, há pouco mais de sete anos, José vira sua existência ganhar um novo horizonte, um novo sentido. Tinha pena de seu amado filho, é verdade, de não poder proporcionar-lhe uma vida diferente daquela, que suas míseras condições poderiam sustentar, todavia dia após dia, debaixo do sol ardente lutava, constantemente, não para dar uma vida pomposa à sua família, já que essa esperança nunca teve, mas para ser o melhor marido e pai que conseguisse.

Depois de uma penosa caminhada, nosso conhecido chega, enfim, à sua morada. A casa é simples, de taipa, teto baixo, com a porta principal bem gasta. José entra quase sem fazer barulho. À janela, está Fátima, sua esposa, com o queixo apoiado na mão, tendo o cotovelo sobre a mesma janela. Fátima permanece estática, parece nem se dar conta da presença de José. Seus olhos, neste momento, brilham, enquanto observa o quintal. Sua boca esboça um sorriso discreto, que se concretiza logo após. Com a atenção, até então, fixa no quintal, volta-se ao marido, quando ouve sua voz grave, porém amigável. 

- Voltei, mulher!

- Que bom, José, ainda tinha água naquele poço? – indagou Fátima como se lembrasse de perguntar algo importante.

- Tinha, graças a Deus, mas não tarda a secar.

- Ah, estou tão preocupada, José, parece que esse ano será como o outro, com pouca chuva – disse taciturna. 

- Deus sabe o que faz, mulher! – respondeu José de prontidão.

Não se surpreenda o leitor com tamanha fé, já que as pessoas, principalmente as mais necessitadas, sentem-se confortadas ao saber ou pensar que há alguém, em um plano superior, prontos a socorrer-lhes mesmo nos momentos chamados conturbados. 

O agricultor pôs a água de ambos os baldes em um compartimento maior. Dirigindo-se, logo após, à janela, o rosto de José tomara um caráter afável, seu coração contraiu-se não de dor, mas de orgulho e alegria. Contemplava, esquecido do mundo, Francisco, de cócoras, nu da cintura para cima, sem chinelos, notavelmente franzino, cabelo crespo, a brincar. O pai da família deu a volta pela porta e, sem se deixar notar, abraçou, de surpresa, o seu único filho. 

- Esse menino passa o dia inteiro brincando – falou José sorrindo, enquanto abraçava o filho.

- Quando o senhor vai me ajudar a fazer meu carrinho, pai? – perguntou o garoto já exaltado pela presença do pai.

- qualquer dia, meu filho. Hoje, papai tem de ir à cidade.

- O que o senhor vai fazer lá?

- Tentar arrumar algum serviço para poder comprar o seu material escolar – disse José, beijando a cabeça do filho. 

Francisco viu seu pai tomar o rumo da casa e ouviu sua mãe avisando-o para almoçar antes da partida. O garoto frequentará o segundo ano do colegial, e neste, assim como no ano anterior, era encontrada, por parte dos pais, dificuldade para comprar seus materiais de estudo. Apesar de bastante jovem, a criança estava ciente da situação alarmante que se encontravam. Sabia, antes de tudo, da crise financeira que sempre os acompanhou, preocupava-se também com a ausência de tempos chuvosos, pois era este o principal fator que agravava a situação econômica daquela família necessitada por natureza. Nosso jovem habituara-se a essa vida contida de bens materiais, à falta de recursos até mesmo para as necessidades básicas como roupa e comida, no entanto, jamais questionara o esforço dos pais em oferecer-lhe, dentro de suas sórdidas condições, o melhor que pudessem. Possuía o amor de seus pais, sentia-o nas carícias, nos gestos, nas palavras. Sonhava um dia ter profissão, formar-se e, desta forma, amparar os seus protetores. Tinha conhecimento da dificuldade que encontraria nessa jornada rumo ao futuro mais digno, contudo estava bastante agitado com o retorno das aulas, estudará na mesma escola do ano pretérito, reencontraria seus amigos que, sejamos francos, não eram poucos. Mostrara-se, no colégio, um garoto muito sociável, amigável e dedicado aos estudos; talvez, por isso, foi alvo de constantes elogios por parte dos professores. 

- Tira a roupa do varal e traz pra cá, Francisco – gritou Fátima de dentro da casa.

- Estou indo – falou Francisco em resposta.

O garoto foi ao varal e, uma por uma, recolheu todas as peças, penetrou a casa com o amontoamento de roupas entre as mãos, segurava-o com dificuldade, Fátima veio logo à porta e o ajudou a pô-las sobre a cadeira. Francisco tinha os olhos em cima de uma vestimenta em especial, olhava-a fixamente como se observasse um artefato místico, todavia não pense o leitor que atentamos, aqui, ao sobrenatural, sendo que nada mais era do que a blusa do uniforme escolar de Francisco. De tamanho P, colarinho azul, tendo o emblema da instituição ao peito esquerdo; a blusa branca por natureza, dizemos por natureza, porque manchas amareladas estavam já perceptíveis, dava sinais de muito uso, mas como seu pai afirmara-lhe ser inconcebível a compra de uma nova, Francisco a usaria por pelo menos mais um ano. Com o pouco capital de que a família dispunha, tornava-se penosa qualquer tentativa de obter algo além de comida. Aparato por parte do governo não havia, nem mesmo uma política ou projeto educacional que fornecesse os utensílios básicos necessários para exercer-se a função de aluno, pois os homens que controlam a economia e regem as leis têm mais o que fazer.  

José, à porta da prefeitura da cidade na qual é nativo, que fica a poucos quilômetros de sua morada, está, em seu íntimo, apreensivo; pois trabalho não conseguira. Recorre, em última esperança, ao prefeito. Ao entrar, depara-se com a secretária, que logo pergunta:

- Boa tarde, senhor, posso ajudá-lo?

- boa trade, senhora, é porque eu queria falar com o prefeito – disse José hesitante.

- Você poderia adiantar o assunto? – falou a secretária com um leve sorriso.

- Vai começar as aulas do meu filho, e eu não tenho como comprar o material dele... – José foi interrompido pela secretária que já havia entendido a situação. 

- Pode deixar, senhor, qual o seu nome mesmo?

- José.

- Seu José, espere aqui, vou ver se o prefeito está presente no gabinete.

José sentou-se, com seu ar humilde, chapéu de palha à mão, usava uma blusa azul, de mangas curtas, rente ao cotovelo; a calça cinza, de pano leve, um pouco larga para seu corpo magro, dava algo de desajustado na aparência de José. Não usava sapatos, não os tinha, os pés firmavam-se sobre chinelos velhos, pois era o que dava para comprar. O único sapato que havia em sua casa pertencia a Francisco, José os adquirira depois de muito esforço, comprou-os para que seu filho pudesse comparecer, o mais descente possível, ao aniversário de seu colega do colégio, que o convidou com muito carinho. Na ocasião, nem mesmo presente Francisco levou. A dívida pecuniária deixada pela obtenção dos sapatos era exorbitante por si só. O leitor deve saber que a quantia referida não ultrapassa quarenta reais, entretanto levando em conta as condições precárias dessa família, a mesma dívida parecia agigantar-se.  
Um homem trajado formalmente estava sentado a uma mesa. O imóvel tinha, sobre si, muitos papéis. Aquele senhor calvo, um pouco acima do peso, parecia extremamente enfastiado com tudo aquilo. Segurava uma caneta, que largou após ouvir um ruído vindo da maçaneta da porta. 

- Senhor prefeito, tem um homem chamado José querendo falar com você, parece que ele deseja uma pequena quantia em dinheiro para comprar o material escolar do filho – disse a secretária já fechando a porta atrás de si. 

- Este José é aquele que mora um pouco afastado da cidade? – perguntou exaltado o prefeito.

- Creio que sim, é um sujeito magro, moreno – resmungou a secretária.

- Eu o conheço bem – disse o prefeito enraivecido – na eleição anterior, ele votou no candidato da oposição, diga a ele que eu estou ausente, ora essa, é cada um que me aparece – terminou o prefeito indignado. 

A secretária tomou o procedimento imposto pelo prefeito, ou seja, dizer a José que o mesmo estava ausente. Nosso agricultor esboçou poucas palavras, deu boa tarde e se retirou. Ia andando a passos vagarosos pelas ruas, seus olhos lacrimejavam, com a alma amargurada vagava para casa. Tentaria, no dia seguinte, conseguir alguma remuneração em troca de serviço. Sentiu, de súbito, uma gota d’água tocar-lhe o braço, levantou os olhos, o céu estava escuro, tenebroso, logo choveria. Talvez fosse esse o prenúncio de dias melhores, mas somente o tempo poderá concretizar tal afirmação. 

Kelvis Albuquerque
Coreaú/CE

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