quarta-feira, 5 de março de 2014

FIM POÉTICO

Falava sozinho ao longo das tardes e em demorados períodos das noites. Discursos de fôlego, ora enérgicos, ora carismáticos, ora quase sussurrando como se ao pé do ouvido de alguém, ora em alto tom como numa reunião ou como proferisse uma palestra. Enquanto isso, os vizinhos percebiam aquele incessante burburinho. 

- O que aturdia ao Pedro Manuel? 

Já desde mais de mês se enclausurara em casa, saindo somente por última urgência, quando a fome lhe forçava a ir ao mercadinho comprar o que comer. Ao caminhar, evitava troca de olhares; vendo alguém que lhe causasse certo desafeto, ficava a resmungar coisas inaudíveis, mudava de expressão, ar de ranzinza e ressentido. Poucos ousados chegaram a tentar troca de palavras, ao que nosso protagonista respondeu com silêncio ou no máximo com um aumento na frequência dos sussurros de si para si, porquanto nada lhe detinha em seu trajeto. Na venda, limitava-se a perguntar o preço, rispidamente, pagava trêmulo, pegava a sacola, saia sem mais. Certa vez, absorto, fez pouco até para o troco.

E é isso.

Além das conversas dele com ele mesmo, nada mais da casa se ouvia, sequer o arrastar duma colher sobre um prato, sequer o balançar duma rede... Portas e janelas fechadas, luz amarela acessa, silêncio... exceto a voz que brandia, que consolava, que aconselhava, que se exibia a um único expectador, em cuja solidão fazia de si dois, o que falava e o que ouvia, o que retrucava e o que treplicava, enfim...

Só de imaginar já dava agonia. 

O que aconteceu com Pedro Manuel? Ora, era um homem dedicado, por demais educado e consciencioso, nunca agrediu com palavras, muito menos fisicamente, a um só vivente durante os meses em que ali estava. Alguns pivetes da rua chegaram tantas vezes a troçar com seu jeito, por sinal realmente engraçado, de andar, e nem ligava, isso certamente não o importunava com tantas coisas realmente relevantes para se cuidar. Ninguém sabia em que trabalhava, porém se o via com livros e papeladas a tiracolo, apressado, bem vestido, jeito de quem sabe das coisas. Talvez fosse professor ou estudioso... Não importa! De certo fazia algo de interessante na vida. Tinha dinheiro; pagou quatro meses de aluguel adiantados da casa, embora modesto. Se bem que nunca o vimos acompanhado de ninguém, nem pai nem irmão, nem namorada nem amigo. Disse ele a Joanina, depois de duas vezes lhe perguntar, que moravam longe. Quem sabe o longe fosse que houvessem morrido ou nunca existido...Vá saber... São todas meras especulações. Hoje as pessoas são mesmo solitárias! É normal! Não damos conta nem da nossa própria vida, né?

Contudo, duma sexta-feira em diante não mais se ouvia suas palavras. Nem saia para canto algum. A luz amarela permanecia acessa. Os vizinhos, mesmo egoístas que eram, começaram a se preocupar, tocando no assunto durante as refeições e a pensar besteiras, influenciados pelas más notícias frequentes dos jornais policiais. Estaria somente envolvido em suas reflexões e estudos? Teria enlouquecido de tanto estudar? Ao que parecia seria o mais lógico.

O menino Vitinho, enxerido, depois de passada uma semana de silêncio - e a despeito das admoestações da mãe que o bem conhecia e recomendara excessivas vezes, o suficiente para lhe despertar o desejo, que não fosse dar uma de besta e xeretar na casa do vizinho -, resolveu tentar espiar. Subiu no muro pela casa contígua, a qual se achava desabitada, e uma brecha nas telhas dava vistas para dentro. Quase caiu para trás. 

Viu Pedro Manuel, magro e amarelo, com os olhos fechados, estendido sobre uma enorme pilha de papeis rabiscados. Nenhum mínimo movimento.

Correu. Chamou a mãe. 

Foram bater na porta. Gritaram por Pedro Manuel, sem sinal de vida. Mário, pai de Vitinho, decidiu-se e acionou a polícia. Chegaram os guardas. Chamaram igualmente. Vendo que nada aparecia, arrombaram a porta aos chutes, entraram e o encontraram mesmo no estado que Vitinho descrevera. Checaram seus pulsos. Mudos. Falecera possivelmente naquele dia, resultado da fome e da insônia. Não souberam notar os papéis que lhe rodeavam. Um deles, de letra vermelho-forte, dizia em versos:

Sou a palavra
Eis o alimento
Sou feito verso
Neste meu tormento
Me basto a mim
Em tanto amar.

Outro, azul de pincel, traçava:

Cansei-me de ouvir o mundo
Tentei em mim mesmo ouvir falar
A mensagem de algo além
Daquilo em que pude acreditar.

E um terceiro por sobre o corpo resumia:

Os versos são minha carne
Meu pão e vinho, minha salvação
São as palavras os meus amores
Somente eles movem o coração
Se fui e vi o que a vida tinha
Se bem sofri e já corri de um tudo
Trago nas letras que falei um dia
O que em outros permanece mudo
Falei, falei, tão pensei e fiz
De mim o verso em que me penei
Paguei o preço com a solidão
Foi mais um passo que eu planejei
Rumo ao infinito do sem-razão
Enfim...

Não coube explicação a sua morte. Sua vida foi, quem sabe, somente um ensejo para a poesia. E seus melhores versos, que tanto queria, suponhamos, cobraram-lhe o preço pela fantasia. A fome lhe rendeu o livro que planejou, espalhado por aquele piso em papéis multicoloridos. Pedro Manuel, um nome, uma desculpa para a poesia. O silêncio a guardava, aguardava o dia em que a loucura lhe renderia poesia. Uma simples história sem sentido, como a verdadeira e sincera vida. A perícia não entendeu aquilo tudo, nem era para entender, por certo, nem os vizinhos, ninguém sequer soube ler direito o que escrevera. Foi tudo ao lixo. O livro. Os versos. O homem. O preço.

Benedito Rodrigues
Membro da APL

Nenhum comentário:

Postar um comentário