Não consegui jamais olvidar os olhos de ressaca da minha primeira e única amada, a despeito da poeira que o longo tempo acumulara. Capitu falecera já há alguns anos; Ezequiel, pouco tempo depois. Com a morte de todos os meus, pus-me ainda mais casmurro. Tocava a vida entre leituras desconexas e caminhadas tediosas.
Permanecia quase todo o tempo enclausurado no gabinete de casa. Às vezes, por entre a fresta da janela, imaginava Capitu passando na rua; imaginava Ezequiel acenando, caminhando de mãos dadas com o pai Escobar, a imagem de um refletida no outro. Cerrava os olhos para não ver.
A secretária tardava em trazer o café. Impossível ter faltado novamente.
– Luzia?
A casa estava vazia. Lá fora alguém parecia bater na porta. Devia ser a secretária chegando para os afazeres do dia. Não podia ser, o relógio marcava sete da noite. Luzia faltara novamente. Eu passara mais um dia com o estômago vazio. Precisava sair. Dar uma volta. Comer alguma coisa e respirar um ar fresco.
As batidas na porta insistiam. Olhei pela fresta da janela. Eram duas pessoas desconhecidas. Tentei recompor-me. Dirigi-me à porta.
Tratava-se de um cientista austríaco chamado Friedrich Hoffman, acompanhado de um tradutor brasileiro. Dr. Hoffman conhecera Capitu na Suíça. Sua esposa se tornara grande amiga da solitária brasileira. Eva Hoffman foi a única pessoa para quem Capitu confessara todo o seu drama. O marido desenvolvia uma pesquisa genética que prometia desvendar os segredos da hereditariedade. A pesquisa ainda estava em fase experimental, mas Dr. Hoffman dizia já possuir elementos para respaldar a tese revolucionária.
Eva Hoffman, instada pelo marido, ficara com uns fios de cabelo de lembrança de Capitu e Ezequiel. Com a morte de ambos, os resultados auspiciosos da pesquisa genética e os equipamentos de um laboratório móvel, Dr. Hoffman empenhou-se em localizar-me no Brasil. Não foi fácil, mas finalmente bateu-me a porta. Fiquei inicialmente assustado e tendente a não servir de cobaia do experimento visionário. Em meio às explicações demasiado complexas para os meus parcos conhecimentos científicos, vertidas para o vernáculo com esforço pelo tradutor, resolvi que não custaria nada tentar aplacar, ainda que tardiamente, a dúvida que me perseguira a vida inteira.
No dia seguinte, Dr. Hoffman retirou-me uma gota de sangue e me solicitou dez dias para me apresentar uma conclusão. Com uns fios de cabelo de Capitu e de Ezequiel e uma gota de sangue meu, o cientista diria em poucos dias se Ezequiel era ou não sangue do meu sangue.
Portei-me com ceticismo diante da convicção do cientista. Como os raios do século XX já haviam chegado com inovações outrora impensáveis, porém, resolvi tentar mitigar uma dúvida alimentando uma outra.
Os dez dias demoraram uma eternidade. Intrigou-me Capitu não haver confessado a traição à senhora Hoffman, depois de revelar-lhe toda a vida. Dormi uma ou duas noites, com sonos atribulados e entrecortados de pesadelos. Quando acordava, continuava a ver Escobar, com um moçoilo à sua imagem e semelhança.
– Luzia? O café!
Ninguém no Rio de Janeiro dava conta de experimento científico semelhante. Um amigo da academia de ciências me afirmou que há certos mistérios que somente Deus pode desvendar.
No final da noite do décimo dia, Dr. Hoffman me apareceu com aspecto taciturno. Entregou-me uns manuscritos permeados de números, fórmulas e gráficos, apertou a minha mão e, por intermédio do tradutor, me disse:
– Capitu estava certa. O senhor é o pai biológico de Ezequiel!
A cabeça girou-me antes do tradutor concluir a oração. Faltou-me terra sob os pés. Permaneci num transe por um vasto tempo. Nem me dei conta de que o cientista, imediatamente, retirou-se para não mais voltar.
Não podia ser. Devia estar delirando. Nada daquilo devia ser real. Deveria ser mais um pesadelo. Não deveria dar crédito ao exame. Os papéis ficaram sobre a mesa. Pareciam tão reais. Manuscritos permeados de números, fórmulas e gráficos que concluíam com: – Vaterschaft, ja.
Consultei o dicionário português/alemão. O resultado efetivamente apontava para a confirmação da paternidade. Bento Fernandes Santiago era o pai de Ezequiel A. Santiago.
Não era possível. Estragara minha vida estupidamente!
– Dr. Hoffman, volte cá para esclarecer o resultado desse exame estrambólico! Tenho fundadas dúvidas acerca da veracidade da sua experiência!
Preciso visitar mamãe, tio Cosme, José Dias, prima Justina... Será que todos faleceram? Não devo andar bem do juízo. Não fosse o resultado palpável do exame de DNA sobre a mesa, diria estar completamente louco. Tenho vontade de passear pela Praia da Glória, de revisitar a casa de Matacavalos.
– Luzia? O café!
– Capitu? Traga-me aqui o menino. Cadê a fotografia de Escobar? Convide Escobar e Sancha para jantar conosco. Viajaremos à Europa juntos.
– Tens ciúme até dos mortos!
José Dias diria que o menino é a minha cara. Prima Justina queria vê-lo. Mamãe, por que não nos visita mais? Dr. Hoffman, volte cá, devolva os cabelos de Capitu! Os cabelos do meu filho Ezequiel A. Santiago!
Há casos de semelhança física muito esquisitos entre as pessoas. Água mole em pedra dura... As pessoas não são pedras. Em verdade, em verdade, fallitur visio. As aparências enganam, mesmo um ex-seminarista que decorou do Eclesiastes que: "Vanitas vanitatum et omnia vanitas." A vida dói mais do que a peça do teatro.
– Luzia? O café! E o veneno da farmácia!
Eliton Meneses
Membro da APL
Eliton,
ResponderExcluirQuando era estudante no Cearense e depois no Liceu, o Professor ou os professores de Português, sabiam ler e ensinavam a difícil arte de ler e interpretar. Acrescentavam que gramática se aprende lendo, e ledo dentre outros autores, o Machado de Assis. Você é de outra geração, juntamente com os demais membros da APL, mas deve ter ouvido isso ou aprendido a ler por conta do próprio talento, ou quem sabe, despertado por um destes hoje raros personagens propagandistas do saber ler...gostos texto este de sua lavra... continuo aprendendo com vocês, confrades da APL, meus conterrâneos.