O sol pairava forte sobre a enorme aglomeração de pessoas, que se locomoviam, aleatoriamente, a diferentes pontos da praia. Ouvia-se, sem grande esforço, o alto barulho de músicas típicas deste período, produzido por aparelhos de som, instalados aos carros que rodeavam o local. Quase todos os presentes levavam uma garrafinha de água à mão, usavam roupas curtas e leves, propícias ao vento, já que era uma época do ano em que apesar das chuvas, fazia forte calor. Esta data é de suma importância a todos, ou quase todos, os brasileiros. Não pense o leitor que nos referimos, aqui, ao desfile de sete de setembro ou ainda à proclamação da república. Todo esse cenário descrito diz respeito ao dia que ninguém trabalha, e tampouco estuda, não por alusão a uma data marcante, que mereça destaque nas nossas memórias, muito menos por ser este, talvez, o dia do senhor. Esta terra cujos habitantes afirmam encontrar-se a nacionalidade de Deus, está em pleno regozijo por ser o dia mais célebre, sublime e de imensurável valor para os nossos cidadãos, o carnaval.
Em meio à multidão, não se sabe exatamente onde, tamanho o fluxo espantoso de pessoas neste evento, havia um rapaz que tinha André por seu nome, ele era um carnavalesco assíduo, frequentava, desde os doze anos, com a mesma efervescência, o clímax do rejubilamento brasileiro, mesmo sem o consentimento de seus pais, que estavam sempre a alertá-lo sobre o crescente número de óbitos neste período. André está no ápice dos seus vinte anos, tem um metro e setenta de altura, porte físico não tão privilegiado, traz, em seu rosto, um sorriso fácil e alegre. Veio de carro com seu melhor amigo, Rafael. Rafael que compartilha da mesma ideia de André, a de que, no carnaval, tudo se pode, tudo se é lícito, tudo é bom. Tendo, por única ressalva negativa, os poucos dias que duram esse êxtase.
Neste exato instante, nosso amigo segura um copo com cerveja, sentado em uma cadeira de plástico, típica em bares. Observa, com grande ar de satisfação, todo o movimento. Para André, nada pode propiciar-lhe tamanho gozo, quanto estar presente ali, rodeado de mulheres fáceis, ouvindo seu axé em alto e bom tom, degustando sua sagrada bebida, em um tempo onde ninguém é de ninguém. André dá uma rápida olhada a sua volta, somente então se apercebe da ausência de Rafael.
- Deve estar por aí- disse André com desdém.
Os dois eram amigos de longa data, tinham a mesma idade, o mesmo gosto musical, além de tudo, radiavam de alegria com a chegada das festas carnavalescas, não porque encontrariam, nessa época, o descanso tão merecido por aqueles que têm cansativas jornadas de trabalho, nem porque se ausentariam dos seus árduos estudos, pois ambos os casos não se cabem a esses dois jovens. Mas, por simplesmente ser este o período áureo onde flora a vivacidade brasileira.
André olhava duas garotas que passavam próximas a ele. Assim como todas as outras daquela praia, essas cobriam seus corpos com pouquíssimas roupas, pois com uma temperatura tão forte, era impossível para elas, coitadas, vestirem-se decentemente. De repente, uma voz levemente rouca chama-lhe a atenção.
- André, onde você estava - indagou Rafael alegremente.
- Eu estive aqui o tempo todo, você é que saiu sem avisar – retrucou André.
- Que moleza é essa? Desde que chegamos você está aí parado, estamos no carnaval, esqueceu?
- Eu apenas iria terminar minha cerveja, cara.
- Larga esse copo, vamos dar algumas voltas – disse por fim Rafael.
Os dois principiaram um lento caminhar, faziam, em seu trajeto, comentários supérfluos, que aqui não nos cabe, acerca da beleza feminina. Era neste ritmo leve que os dois amigos andavam, quando, repentinamente, André percebe um tumulto logo adiante e fala sem hesitar:
- O que será que está acontecendo ali, Rafael?
- Só saberemos indo ate lá – respondeu Rafael já se direcionando ao local.
- Então vamos! – exclamou André, enquanto o seguia.
Dois homens aparentemente alcoolizados brigavam entre si, ambos com suas respectivas facas, proferindo insultos um ao outro. O amontoamento em volta era colossal, algumas pessoas de boa fé tentavam segurar os brigões, porém, estes manuseavam suas armas rumo àqueles que se opusessem ao confronto, que deve ter se iniciado, embora não saibamos exatamente como, por alguma causa fútil, como é tradicional nessas épocas de muita festa. No entanto, de súbito, um rapaz interveio, segurando um dos homens, enquanto outros presentes imobilizavam o segundo. O que não era de esperar, todavia, era que em um último reavivamento de suas forças, o primeiro homem livrar-se-ia dos braços que o aprisionavam e em uma ação impulsional e colérica, acabasse por ferir o estômago de quem o segurava. Percebendo a fatalidade, logo um grupo de carnavalescos socorreu o rapaz, imobilizando também o bêbado que se soltara. O assombro foi generalizado, o rapaz sentia bastante dor, o golpe o ferira um pouco abaixo do umbigo, seu órgão interior estava exposto, André corria risco de vida.
Rafael, mais depressa que pôde, auxiliado pelos demais que assistiram à cena, pôs André em seu carro e se encaminhou ao hospital mais próximo. Durante todo o caminho, Rafael condenava, intimamente, a atitude imprudente de seu irmão, desculpe-nos o leitor, o vocábulo, mas para aqueles que crescem juntos, não há palavra que designe melhor esse laço recíproco do que o por nós, aqui, empregado.
Logo à entrada, o porteiro do hospital ajudou Rafael a carregar André a uma sala de cirurgia, porém o funcionário comunicou Rafael que o único cirurgião daquele posto estava ausente, pois era feriado. Rafael desesperou-se, mas antes de qualquer outra reação por parte deste, o porteiro, de súbito, foi à recepção e, nervosamente, narrou a urgência à senhorita ali parada, que, sem oscilar, ligou para o cirurgião.
Em certa praia, a qual não identificamos exatamente, pois, no Brasil, durante o carnaval, todas se assemelham. Um rapaz alto, hercúleo, conversava distraído com uma bela mulher, quando seu telefone celular toca, seu rosto adquire automaticamente um semblante antipático, ele atende, mas antes que a voz do outro lado pudesse proferir a mais singela palavra, o jovem exclama: - estou de folga, não importa o que seja, não volte a me ligar! – em seguida, desliga o celular, põe-no no bolso e afaga a mulher carinhosamente.
A atendente, estupefata, olha Rafael e fala tristonha:
- Ele não vem.
Rafael, em pranto, joga-se sobre o corpo de André deitada à cama, seu estado é desolador, as lágrimas quase jorram de seus olhos. Rafael Põe a orelha rente ao peito de seu amigo, não para ouvir os batimentos do coração, porque este já não há, mas por ter a sensação de ser a este órgão, que o corpo confia seu último sopro. André jazia no leito, se aquele cirurgião houvesse atendido ao chamado, talvez, André, neste momento, estivesse vivo, mas nosso cirurgião não é tolo, não iria estressar-se, na sua folga, com alguém que nem conhecia, e não iria, sobretudo, deixar de viver plenamente a data mais célebre, sublime e de imensurável valor para nossos cidadãos, o carnaval.
Kelvis Albuquerque
Graduando em Letras (UVA)
Aroeiras, Coreaú - CE
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